O Brasil no conselho do Artico: um olhar estratégico na direção do futuro
CONTEXTO E ASPECTOS GERAIS DO TEXTO
O Ártico, cuja importância durante a Guerra Fria era eminentemente estratégica-militar, tem despertado interesses além dos geopolíticos, revivendo seus dias de protagonismo à medida que o degelo avança. Atualmente, é visto como uma área rica em recursos minerais, petróleo e gás natural, além de uma potencial nova rota comercial marítima que pode impactar a economia global. A latente riqueza fez despertar o interesse pela sua governança, cujos atores estatais e não-estatais procuram desenvolver, em conjunto, as áreas de interesse comuns, ao mesmo tempo que tentam preservar seus anseios específicos. A partir dessas intenções foi criado o Conselho do Ártico (Arctic Council, em inglês), que compreende, além dos oito estados Árticos (Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia e Suécia), os chamados “Observadores” (dentre eles, Estados, Entidades Políticas e Organizações Não-Governamentais). Os desafios que a governança, as disputas hegemônicas, os interesses dos povos nativos e as mudanças climáticas impõem sobre o Círculo Polar Ártico podem servir como referência para o Brasil nas questões sobre a política externa para a Antártica e, mais importante ainda, sobre as políticas internas para a Amazônia e a Zona Econômica Exclusiva, assuntos dos quais trataremos agora.
A IMPORTÂNCIA DO OCEANO GLACIAL ÁRTICO
As expedições exploratórias no Ártico tiveram início somente no século XX, mas a região já era habitada há muito mais tempo. Cerca de 4 milhões de pessoas vivem hoje nas áreas banhadas por esse oceano, 10% delas sendo indígenas. O oceano ártico é uma importante fonte de subsistência para os moradores das pequenas vilas que se distribuem pelas extremidades ao norte dos continentes asiático, americano e europeu, cuja maioria populacional se encontra na Rússia. A pesca é a principal atividade econômica praticada por essas populações. Destaca-se também o valor do turismo para alguns desses agrupamentos, atividade que vem ganhando um número cada vez maior de adeptos.
Os recursos naturais de maior valor econômico encontrados no Ártico são o petróleo, o gás natural, as reservas de água doce e as espécies de peixe e focas. A exploração dos combustíveis fósseis se dá de forma mais intensa nos territórios do Alasca (Estados Unidos) e norte da Rússia. Com a presença dessas reservas, cresce também o interesse pelo domínio político e militar da área. Em termos de valores, o Ártico guarda cerca de 25% das reservas de gás natural e 10% do petróleo ainda não explorados do mundo.
Além disso, o Oceano Glacial Ártico tem uma grande importância ambiental, pois possui grande influência nas dinâmicas climáticas do planeta, sendo um dos principais pontos de degelo na superfície terrestre. Dessa maneira, é uma região importante para a realização de pesquisas científicas ambientais, assim como para monitoramento das dinâmicas climáticas globais.
Em função do degelo, novas rotas comerciais estão ganhando espaço e protagonismo pela redução de gastos. A Rota Nordeste, como é conhecido o itinerário que liga o Oceano Atlântico ao Pacífico, passando pelos mais de 24 mil Km da costa russa, reduz em cerca de 40% o caminho entre a Europa e a Ásia, pela tradicional rota pelo Canal de Suez. No entanto, durante 5 ou 6 meses do ano, se faz necessária a escolta de navios quebra-gelo para que os transportes marítimos completem o percurso.
O Conselho do Ártico é um fórum intergovernamental de alto nível que nasceu, formalmente, em 1996, em Ottawa, Canadá, focado em questões de proteção do meio ambiente naquela região e ancorado em temas ligados à proteção de formas sustentáveis de desenvolvimento. Inclui oito estados-membros fundadores, que em 1991 assinaram a estratégia Ártica de Proteção do Meio Ambiente: Canadá, Dinamarca (que faz parte do grupo por meio da Groenlândia), Finlândia, Islândia, Noruega, Rússia, Suécia e EUA. Juntam-se a eles seis grupos indígenas da região ártica, com status de “participantes permanentes”: a Associação Internacional Aleuta, o Conselho Atabasco do Ártico, o Conselho Internacional Gwich’in, o Conselho Inuit Circumpolar, a Associação Russa dos Povos Indígenas do Norte e o Conselho Saami. Há, ainda, os chamados “Observadores”, cujos componentes são França, Alemanha, Itália, Japão, Holanda, China, Polônia, Índia, Coreia do Sul, Singapura, Espanha, Suíça e Reino Unido, além de Organizações Interparlamentares e Intergovernamentais e Organizações Não Governamentais (ONG).
As atividades, projetos e eventos deste Conselho têm, naturalmente, adquirido conteúdos mais “políticos”. Com efeito, tanto a descoberta de reservas de hidrocarbonetos (confirmadas ou estimadas), quanto a sua navegabilidade em períodos mais longos, têm cooperado em favor de uma importância político-estratégica mais geral para a região ártica e, em consequência, aumentado a sua centralidade geopolítica.
Nesse sentido, o Conselho do Ártico estruturou as diversas temáticas a serem tratadas com a finalidade de guiar o desenvolvimento de políticas regionais, quais sejam: pesquisa, meio ambiente, inovação e tecnologia, educação, desenvolvimento regional, leis internacionais, povos indígenas, infraestrutura, transporte, navegação, busca e salvamento, turismo, pesca, óleo e gás, mineração e presença militar. Ocorre que nem todos os atores possuem as mesmas prioridades no que diz respeito aos temas do bloco, tendo em vista que cada um age de acordo com os próprios interesses, visando a sobrevivência no sistema internacional. Em outras palavras, a cooperação existe, porém cada player persegue seus objetivos estratégicos, privilegiando os assuntos que lhes são mais interessantes, ao mesmo tempo que evitam ou afastam aqueles que são inconvenientes ou inoportunos.
Estratégia do Ártico – Estados Fundadores / Fonte: Helmholtz Centre for Polar and Marine Research – Celma Regina Hellebust, Escola de Guerra Naval, 2019
UM FATO QUE PODE MUDAR AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS
Vimos que o Ártico é uma região em que a cooperação promove um certo ambiente de calma entre os atores envolvidos, apesar de alguns choques de interesses, que até determinado ponto é algo natural e previsível. No entanto, o frágil equilíbrio da paz ártica foi seriamente perturbado pouco depois do início da guerra na Ucrânia, em março de 2022. As atividades do Conselho do Ártico foram suspensas por causa da agressão militar empreendida pela Rússia no país vizinho, que violou leis internacionais. A suspensão interrompe uma profícua cooperação e a exemplar relação entre todos os membros do órgão, cuja presidência – que possui caráter rotativo – está nas mãos da própria Rússia até 2023. O conselho considerou a campanha imperialista russa um grave “impedimento à cooperação internacional”. É importante destacar que as questões ligadas à securitização, até aquele momento, estavam sendo evitadas com sucesso. Este fato é significativamente negativo, haja vista que comprometeu a comunicação plena entre seus membros, os projetos de pesquisas e prejudicou o estudo dos efeitos das mudanças climáticas em escala global.
Contudo, isso pode não ser considerado um problema para o Kremlin, pois o governo possui certo interesse no degelo ártico para aumentar suas terras agricultáveis, hoje congeladas (permafrost), para construir a infraestrutura necessária ao desenvolvimento de nova rota comercial marítima no norte (que passa ao longo de toda a costa setentrional russa) e a exploração de recursos naturais, como o petróleo e o gás natural, que correspondem, respectivamente, cerca de 10% e 25% das reservas mundiais não exploradas. Isso fica mais claro quando analisamos o quadro de prioridades dos países árticos: para a Rússia, de acordo com uma breve análise do quadro de prioridades, pesquisas; tecnologia; infraestrutura; navegação; mineração; petróleo e gás; e militarização ocupam o topo de seus objetivos no Ártico, ao passo que meio ambiente; preocupação com povos indígenas; e o intercâmbio entre equipes de salvamento e resgate são metas secundárias. Por outro lado, educação; desenvolvimento regional; e estabelecimento de regulamentação são prioridades de baixa importância.
Dessa forma, o conflito no leste europeu deixa uma incógnita no que tange à cooperação ártica. Com o acirramento das tensões multilaterais em escala global, com China e Rússia de um lado e OTAN do outro, cada parte procura aumentar sua esfera de influência, tensionando cada vez mais a paz. No caso do Conselho do Ártico, em que seis dos oito Estados fundadores fazem parte, simultaneamente, da OTAN (exceto Suécia – por enquanto – e Rússia, motivo da interrupção do conselho), a guerra e a suspensão das atividades do órgão aumentam o sentimento de incerteza e desconfiança mútua quanto à paz regional no pós-guerra no leste europeu.
DESENVOLVIMENTO
Inicialmente, é importante destacar que nenhum país do subcontinente sulamericano ocupa uma cadeira de observador no Ártico, cuja participação no seu conselho exige a contribuição em algum projeto. Porém, Chile e Argentina possuem interesses objetivos em demandas na Antártica, que os deixam na dianteira quando alguma questão relacionada ao continente do extremo sul vier à tona. A inserção no Conselho do Ártico, portanto, requer certo investimento inicial e gastos com o seu acompanhamento. Para ser aceito, o governo brasileiro, em conjunto com a iniciativa privada, deve apresentar algo que seja útil ao grupo do norte. Sua expertise em prospecção de petróleo e gás natural em grandes profundidades, bem como com sua capacidade de desenvolvimento de pesquisa científica, poderiam ser úteis. A intenção em participar do bloco reside na possibilidade de aprender com o complexo e frágil equilíbrio de forças no extremo norte, com vistas à aplicação em um futuro cenário de disputa no continente Antártico, no bioma amazônico e em sua zona econômica exclusiva (ZEE), conhecida informalmente como Amazônia Azul, cuja extensão litorânea gira em torno de 8.500 Km.
Em termos de esclarecimento, a chamada Zona Econômica Exclusiva é uma faixa situada para além das águas territoriais, sobre a qual cada país costeiro tem prioridade para a utilização dos recursos naturais do mar, tanto vivos como não-vivos, e responsabilidade na sua gestão ambiental. Estabelecida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), a Zona Econômica Exclusiva se estende por até 200 milhas náuticas – o equivalente a 370 km. Apesar da exclusividade, todos os outros Estados gozam da liberdade de navegação e sobrevoo, da colocação de cabos e dutos submarinos, e outros usos lícitos do mar.
Esse espaço marítimo é conhecido como Amazônia Azul e possui aproximadamente 3,5 milhões de km² que apenas o Brasil pode explorar economicamente e que conta com riquezas naturais e minerais abundantes. Além disso, a navegação, a pesca, o turismo, o potencial de geração de energia renovável, e, principalmente, a extração de petróleo e gás fazem da faixa oceânica fundamental para a economia e a soberania do país. Em termos práticos, na área da Amazônia Azul estão as reservas do pré-sal e dele se retira cerca de 85% do petróleo, 75% do gás natural e 45% do pescado produzido no país. Via rotas marítimas são escoados mais de 95% do comércio exterior brasileiro.
Atualmente, o Brasil exporta equipamentos de última geração para a extração de óleo e gás para as companhias que desempenham essa atividade no extremo norte. Com o escopo de aumentar as exportações para o crescente mercado da indústria energética ártica e incrementar a capacitação do setor no âmbito nacional, faz-se necessária a presença naquela região, como formas de intercâmbio e de cooperação. Além disso, o desenvolvimento das pesquisas científicas, da infraestrutura, do transporte, da exploração mineral, dos marcos regulatórios e da presença militar no Ártico trazem consigo o avanço das tecnologias, de doutrinas e das atividades de inovação que poderão ser utilizadas no Brasil, notadamente nos campos das comunicações, do monitoramento, de vigilância e defesa através de satélites, robôs, sensores, veículos aéreos não-tripulados etc, todos úteis para uso na Amazônia.
No contexto da participação brasileira nas áreas anteriormente citadas, destacamos o Arctic Offshore Regulators Forum (AORF), cujo foco é o debate sobre técnicas e segurança offshore na indústria do petróleo. As trocas de informações, melhores práticas e experiências relevantes aprendidas são as ferramentas utilizadas para complementar o trabalho de outros organismos internacionais de segurança offshore. É permitida a participação de agências de outros países que possuem interesse em cooperar com a AORF, dependendo da filiação junto a essa organização.
Entre outros argumentos para a participação brasileira na governança do Ártico, cabe ressaltar que as questões ambientais discutidas atualmente no extremo norte e os marcos regulatórios originados nos debates e nas práticas da indústria petrolífera na região poderão refletir, cedo ou tarde, em parâmetros e em políticas para a Amazônia e para a Antártica. As discussões sobre o meio ambiente, notadamente a sustentabilidade, serão alvos de recorrentes debates. Sendo assim, os estudos sobre as especificidades do Ártico podem trazer avanços significativos e, consequentemente, liderança e maior peso na influência do Brasil em decisões das mesmas naturezas em outros fóruns. O resultado é a potencialização do programa Antártico brasileiro já em andamento e do sistema de monitoramento, vigilância e defesa da região amazônica.
Em continuação, a exploração de petróleo e gás em áreas restritas e ambientes frágeis como o Ártico e a Amazônia possuem muitas similaridades que poderiam trazer alguma vantagem para o Brasil. A tecnologia subsea brasileira utilizada na região ártica poderia gerar intercâmbio de exploração com ganhos para o país. Os organismos estatais que mais poderiam extrair boas práticas e conhecimentos em todas as operações no polo norte são a Agência Nacional do Petróleo (ANP), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente (Ibama) e as Forças Armadas brasileiras, além de universidades e outros centros de estudos científicos.
Por último, vale lembrar que a atual arquitetura de poder internacional caminha para um novo tipo de colonização, em que as classes política, intelectual e empresarial trabalham juntas, principalmente em países subdesenvolvidos, para explorar mediante a cooptação da opinião pública e de seus representantes eleitos em favor de seus interesses econômicos disfarçados de justiça e altruísmo, sob a forma de ideologias que, mesmo sendo contrárias aos interesses da nação, são amplamente aceitas. Em termos práticos, um modelo que podemos tomar é o da “governança” sobre a Amazônia, com o envolvimento de países e ONGs que propõem uma corresponsabilidade na gestão das riquezas naturais e minerais, da biodiversidade, da água potável, do potencial energético e do subsolo, todos propriedades do povo brasileiro, e que deveriam ser explorados, de forma sustentável, para ele.
Em um futuro não muito distante, acreditamos na discussão e na criação de um organismo semelhante ao Conselho do Ártico, composto pelos países abrangidos pelo bioma amazônico e Estados observadores para gerir a floresta e a exploração de suas riquezas sob o manto da preservação ambiental. Atualmente no Brasil, existe o Fundo Amazônico, que é centralizado pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), cuja finalidade é receber “doações” de milhões de dólares de países interessados na “proteção do meio ambiente” e a venda de créditos de carbono para os maiores poluidores e devastadores de florestas do mundo. Em comparação, temos o Conselho do Ártico composto por nações ricas e desenvolvidas, dentre elas as maiores potências mundiais (EUA, China e Rússia), orbitado por Estados menores. Se levarmos em consideração a criação de um órgão análogo na Amazônia, teremos um grupo de países pobres e subdesenvolvidos orbitados por outros mais influentes e mais privilegiados em termos econômicos, tecnológicos e militares. O resultado seria um forte domínio e dependência dos membros amazônicos em relação aos “observadores”, que culminará com a ameaça iminente aos verdadeiros interesses regionais.
CONCLUSÃO
O contexto geopolítico internacional que experimentamos no presente momento não permite que o Estado Brasileiro negligencie os interesses nacionais a cada troca de governo. O país, há muito tempo, busca protagonismo no sistema internacional e, se deseja exercer seu soft power e ser prestigiado nas decisões globais, deve se inserir nos mais variados fóruns de discussão do planeta, pautando-os e levando suas aspirações, ou será relegado ao destino que lhe cabe como país periférico, cujo destino será determinado por outros Estados. O Brasil tem a maior economia, extensão territorial, população, PIB, quantidade de biomas, potencial energético, recursos naturais e minerais e Forças Armadas do continente sulamericano e, por isso, desempenha papel de liderança regional.
Sendo assim, o interesse do Brasil em ingressar como Observador no Conselho do Ártico e a sua inserção no ambiente polar para desempenhar quaisquer papeis anteriormente mencionados, ou ainda outros que venham a se apresentar como oportunidades, devem passar, necessariamente, por Brasília. A perseguição por vantagens em um ambiente de possível disputa no âmbito do subcontinente ou com potências internacionais deve ser tratado com a urgência necessária. Para isso, é preciso incentivo, com a destinação de recursos do orçamento federal, a serem aplicados no Ministério das Relações Exteriores e em outros organismos interessados. Com esse fim, o governo deve trabalhar no convencimento da opinião pública no que concerne às aspirações no Ártico e sua importância para o futuro do Brasil.
Os acontecimentos no Ártico poderão ser balizadores para a definição de políticas para a Antártica, para a Amazônia e para nosso espaço marítimo exclusivo. Portanto, o governo e o povo brasileiro devem decidir, com brevidade, sobre a participação brasileira na governança do extremo norte para que possa ganhar experiência no âmbito das decisões sobre meio ambiente e sustentabilidade, exploração de recursos naturais, desenvolvimento de tecnologias, marcos regulatórios e operações militares no que tange às áreas de interesse geoestratégicos futuros.